Editado por: Catarina Casal
A luz do mundo lá fora torna-se demasiado forte para ignorar. Abro lentamente os olhos e observo o que me rodeia. Pedras e água. Há algo reconfortante em acordar todos os dias com a mesma paisagem. Os deuses acordam, sonoramente, e interrompem o silêncio da minha manhã. Falam sempre comigo – apesar de não conseguir perceber metade do que me dizem – e parecem sempre entusiasmados por me ver. A sua mão gloriosa desce sobre a minha pequena casa e provê o alimento até o sol se voltar a pôr. É a eles que devo a liberdade e conforto da minha estadia, cuidando de mim e ouvindo todas as minhas preces.
Sempre acreditei nos deuses. Sei que há tartarugas que acham que são uma mera visão e apenas um produto da ingestão de camarões marítimos em mau estado, mas os meus deuses são reais. Vejo-os todos os dias quando me acordam e fazem companhia. Não seria ninguém sem os deuses.
Como qualquer outra tartaruga, os meus dias são passados na contemplação. A minha casa foi generosamente construída – pelos deuses, é claro – ao lado de uma superfície luminosa a que estes chamam de janela. Ainda estou a perceber como funciona, mas a partir dela posso desfrutar das mais belas paisagens e criaturas. Os deuses apenas me visitam duas vezes por dia e o resto das minhas horas são passadas na busca da compreensão do novo: delicio-me com as entidades fortes e verdes que dançam com a melodia do vento, com as pequenas criaturas que levemente poisam nas suas extremidades. Invejo a sua capacidade extraordinária de levitar, seguindo ninguém, apenas elas mesmas. Questiono-me se o que está para além desta janela também é meu; se é apenas um universo que os deuses me deixam apreciar, mas que não é para mim; questiono se há mais para além das minhas pedras.
Os meus dias são simples. Calmos, repetitivos e relaxantes, mas repetitivos. Acordo perante pedras e água. Outra vez. Os deuses entregam-me camarões – outra vez – e rapidamente desaparecem. Para onde será que vão? Será que o universo da janela lhes pertence? Será que é ali que residem e exercem os seus poderes divinais? Constato-me com o pouco que sei e o muito que quero descobrir. Entrego as minhas preces aos deuses, o meu desejo por mais, sem deixar de fora o meu profundo agradecimento. Tudo o que sou, sou graças aos deuses.
Acordo. Pedras e água. A janela muda com o avanço dos dias. As entidades decoradas de tons verdes encontram-se nuas e frias. As criaturas que deambulam pelas ruas cresceram cobertas para combater o frio do dia sem luz. Como será o frio? A minha casa está sempre a uma temperatura mundana e ideal – graças aos deuses é claro, que me impedem de experienciar o frio. Tudo o que sou, sou graças aos deuses. Quem seria eu sem os deuses?
Acordo. Pedras e água. Os deuses aproximam-se de mim, descem a sua mão e possibilitam-me outro dia. Como será poder existir na plenitude da independência? Acordar sem pedras e água, sem alimento escolhido por outros, viver na descoberta de um dia distinto, um dia novo por viver. A contemplação dos meus dias transforma-se numa luta interior, um desconcerto sufocante, uma dúvida que não é respondida. É isto o que sou? Tudo o que serei? Pedras e água?
Não consigo dormir. Sinto uma inquietude perante tudo o que me trazia conforto. A superfície da janela assombra-me. A mão que provém é também aquela que prende. Tudo o que tenho devo-lho a eles e tudo o que me falta, escolheram-no tirar de mim. Que crime cometi? Que pecado é a pequenez que me mantém à mercê dos gigantes. A luz do amanhã é possível porque eles o permitem. O sonho do exterior, do mundo por conhecer, consome as minhas noites e é distração dos meus dias. Os deuses sentem afeto por mim, consigo senti-lo. As minhas preces são destinadas a eles, na esperança que me oiçam e me concedam o desejo de liberdade por que tanto anseio. Sei que não me percebem. Sei que não me conseguem ouvir. Será que conseguiria sobreviver sem eles? Quem sou eu sem o amor dos deuses?
Descanso então aqui, na proximidade do brilho da janela, ouvindo as melodias de um mundo distante, de um mundo que não é meu, de um mundo por descobrir. Deito-me nas minhas pedras, segura e tediosa, enquanto espero que os meus deuses acordem. Já estou com fome.
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