No dia 1 de outubro, ocorreu na Biblioteca de Alcântara a apresentação da sétima edição do festival «Esta Noite Grita-se». Este evento, que teve início no dia 6 de outubro, e que ao longo deste último trimestre do ano de 2023 levará a cabo um ciclo de leituras interpretadas de textos de teatro. Para além de celebrar os clássicos, a curadoria do evento trouxe uma seleção de peças inéditas ou pouco representadas em Portugal. A direção artística é de Filipe Abreu e Miguel Maia.
Cartaz de Esta Noite Grita-se
Ao todo são cinco peças, sendo três das mesmas definidas pelos diretores: Tatuagem, de Dea Loher (6, 7 e 8 de outubro); Coragem d Mãe, de George Tabori (3, 4, 5 de novembro); Menina Júlia, de August Strindberg (17, 18 e 19 de novembro); uma escolhida pelos artistas convidados, Joana Cotrim e Miguel Sopas, A Vénus em Peles de David Ives (20, 21 e 22 de outubro), além da obra vencedora do 3º Prémio Nova Dramaturgia de Autoria Feminina, Tanque, de Sofia Perpétua (2 e 3 de dezembro).
Ao longo da duração do evento, fomos introduzidos à proposta desta sétima edição de Esta Noite Grita-se, a alguns dos intérpretes que farão parte das leituras, à vencedora do prémio da terceira edição, Sofia Perpétua, e a excertos das obras, para nos melhor familiarizarmos com o que nos aguarda.
As cinco obras presentes no festival abordam temas que nos são chegados, como a temática da guerra (em maior ou menor grau), de maneira crua ou absurda, realista e genuína. «Reflete o mundo em que vivemos», referiram Filipe e Miguel, em momentos distintos. Mesmo os textos que não foram escolhidos pelos dois diretores abordam temas semelhantes, sendo reforçado vigorosamente o sentido de «clima hostil» em que nos encontramos em 2023. O que procuramos consumir irá, sempre ou quase sempre, refletir o nosso estado de espírito quando somos afetados pelo ambiente externo, desse modo a leitura também se refletirá da mesma maneira.
No final da leitura dos excertos, houve uma confraternização com comes e bebes e tivemos a oportunidade de conversar com os diretores sobre as suas escolhas, inspirações e o futuro da arte e do teatro. Ambos enfatizaram como o período pós-pandémico e de guerras constantes acabou por moldar o consumo cultural, reforçando que o próprio teatro se vai moldando consoante as épocas – vale mencionar que Coragem de Mãe, de Tabori, é uma peça autobiográfica, onde o autor narra a história da improvável salvação da sua própria mãe, uma sobrevivente do holocausto. Conto datado de 1979, com palco em 1944, que expõe um tema ainda hoje de interesse geral.
Tanque, de Sofia Perpétua, vencedora do prémio Nova Dramaturgia de Autoria Feminina, transporta também o tema das guerras do século XX para o palco da contemporaneidade – Inspirada pelo teatro do absurdo, Perpétua apresenta ao público um texto cómico de tão bizarro, marcando com uma perspetiva emocional um tema que é tão recorrente na literatura, teatro e cinema.
Com a exposição destas obras ligadas à desumanidade dos conflitos armados, é transparente na minha mente um poema do cantor e poeta brasileiro, Arnaldo Antunes, «Antigamente as guerras acabavam. O fim delas era comemorado com grande entusiasmo. Agora elas apenas continuam.»
Quanto às outras obras, Tatuagem, de Dea Loher, transmite ao espetador um cenário doméstico de abuso psicológico e sexual de um pai para com as filhas. Um texto cru e de embrulhar o estômago, que nos faz questionar a própria humanidade; já Menina Júlia, de Strindberg, acompanha uma jovem da aristocracia, classe social decadente no final do século XIX, num jogo de poderes e sedução; assim como a obra Vénus em peles, de David Ives, adaptação de uma novela literária de 1870 do escritor austríaco Leopold Von Sacher-Masoch, cujo nome dera origem ao termo «masoquismo» – como é de imaginar, na obra trata-se também esse mesmo jogo de dominação.
Ao serem questionados sobre o que esperar da arte e do teatro para o futuro, houve um misto de sentimentos. Mostraram-se otimistas em relação à forma como o extrínseco poderá afetar a arte, referiram que nem as guerras, nem as e epidemias de doenças infecciosas, irão suspender a prática artística, pelo contrário, só a fortalecerão, refletindo a arte os tempos e circunstâncias da humanidade.
Porém, referiram a ascensão de um há um «inimigo», mais forte e de grande poder manipulativo – as redes sociais, dando principal ênfase às redes sociais performáticas, como o Tik Tok e o Instagram. Embora a arte se tente adequar ao máximo ao ambiente em que reside, sofrendo mutações extremas com o passar das décadas, o alastrar global das redes sociais trouxe consigo o empobrecimento do senso crítico do ser humano e iniciou um processo de ferimentos ao conceito teatral, que a longo prazo nos será prejudicial a nós, e à produção artística.
Porém, fora os obstáculos, a arte teima e aguarda por aqueles que a procuram. Apesar das crises sanitárias, dos conflitos armados e das devastações, a arte permanece como uma fuga ao mundo real e às suas adversidades e uma humana maneira de nos expressarmos a nós e assistirmos o expressar dos outros.
Editado por Inês Jordão
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