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Carson (Elu/Delu)

Noirvembro

Ao longo da história, os seres humanos sempre sentiram a necessidade de criar arte como forma de lidar com a conjuntura política e económica do seu tempo - quer fosse na forma de pintura, música ou literatura. O que resultava deste ato de auto-expressão provou, sistematicamente, ser uma de duas coisas: ou uma forma de fugir à realidade, demonstrando apenas os bons aspetos da vida - o amor, a alegria, uma noção geral de otimismo -, ou uma representação dos piores e mais difíceis aspetos da mesma e, até, de nós próprios. Dos impressionistas aos realistas, dos românticos aos góticos, e assim por diante, todos contribuíram para isto - e o cinema noir não é exceção.

 

Alguns dos filmes que serão exibidos pelo NUCIVO (@nucivo_flul). Clica nas fotografias para acederes à calendarização do Ciclo Noirvember.

 

Tendo surgido pela primeira vez no início dos anos 40, em Hollywood, sob o nome «melodramas», numa época de grande ansiedade, pessimismo e desconfiança, causados pela Segunda Guerra Mundial, este tipo de cinema ia de encontro a tudo o que se fazia na altura. Enquanto as comédias e musicais americanos eram muito populares, com finais felizes e enredos animadores, o cinema noir representava o lado mais escuro da vida, bem como a perspetiva dos anti-heróis, violenta, gananciosa e até criminal, que servia de metáfora para os males da sociedade. Tal acontecia através do desespero, da paranóia, da desconfiança, do medo, da perda da inocência e de finais raramente (ou nunca) felizes. O próprio nome é espelho disso: cunhado pelo crítico cinematográfico francês Nino Frank, em 1946, após este ter reparado no quão escuros e desanimados eram os temas e os visuais nos filmes policiais americanos que chegaram a França durante e após a Segunda Guerra Mundial [por exemplo, Até à Vista, Querida (1944) e Laura (1944)]. Esta corrente do cinema era altamente inspirada pelo expressionismo alemão dos anos 20 e 30 - que deu origem a longas metragens como Metropolis (1927) - e pela banda sonora de filmes franceses dos anos 30. Ainda que persista o debate entre académicos e cinéfilos relativamente à classificação do noir como género cinematográfico, o historiador de cinema Mark Bould considera o cinema noir um «fenómeno esquivo... sempre fora do alcance».


Estes filmes basearam-se em múltiplas peças da literatura americana, entre os quais alguns dos mais vendidos romances de cordel e literatura policial, escrita por autores como Raymond Chandler e James M. Cain, entre outros. Os enredos eram frequentemente complexos e não lineares, recorrendo a analepses, monólogos de humor afiado e a uma narração reflexiva na primeira pessoa. Na maioria das vezes, centravam-se num protagonista masculino, cínico e sem coração, estereotipicamente um detetive que usava fedora e que se cruzava com a famosa femme fatale, uma mulher linda, mas promíscua, que, mais tarde, usa os seus atributos e sexualidade para o manipular a «dar o peito às balas», normalmente após um homicídio. Contudo, após a traição, também ela cairia em ruína, muitas vezes à custa da vida do herói.


A femme fatale, e todo o conceito que representa, mostra-nos que até no cinema feito para criticar o lado mais desumano da natureza humana, talvez sem o saber ou sem querer, mas sem dúvida que ironicamente, falhavam num aspeto muito importante: a forma como tratam grupos oprimidos. No que diz respeito às mulheres, eram divididas em duas categorias: as amorosas, respeitadora e submissas, nas quais se podia confiar, e as femme fatale, misteriosas, deslumbrantes, manipulativas e predadoras. Em quase todos os casos, o protagonista era forçado a escolher que caminho seguir, reduzindo a mulher a um simples mecanismo para fazer avançar o enredo e reforçando o complexo de Madonna-prostituta, uma teoria de psicanálise que divide as mulheres entre santas e pecadoras, que considera ainda que os homens sistematicamente amam as primeiras e desejam as segundas, nunca as misturando. Tendo em conta que, durante a guerra, as mulheres tinham mais liberdade, independência e poder laboral, era claro que iriam sofrer nestes filmes dos anos 40.


Outro grupo tratado com preconceito nestes filmes é a comunidade LGBTQ+. As lésbicas não eram muito evidentes no noir, já que o contexto cultural da sua época não lhes prestava muita atenção. Contudo, quando apareciam, era frequentemente na forma de predadoras. Um exemplo disto é o musical Êxito Fugaz (1950), de Michael Curtiz, no qual a neurótica Amy North (Lauren Bacall) troca o seu namorado machão Rick Martin (Kirk Douglas) por uma mulher. No que diz respeito aos homens homossexuais, a sua representação nestes filmes pode ser polémica: apareciam ou de forma assumidamente homossexual ou que simplesmente o indiciava, mas eram, na maiorias das vezes, vilões malvados e sádicos. Em M - Eine Stadt sucht einem Mörder, por exemplo, Peter Lorre desempenha o papel de um atormentado violador de crianças e em O Falcão Maltês o de um crimoso afeminado; já em Rajada de Morte (1955), de Joseph H. Lewis, os gangsters Fante (Lee Van Cleef) e Mingo (Earl Holliman) representam, claramente, dois amantes - trabalham e relaxam juntos e dormem juntos no mesmo quarto -, mas são mortos antes do final do filme.


Contudo, ainda que preconceituosos e, às vezes, superficiais, estes filmes continuam a representar uma parte importante e influente da história do cinema, tendo desenvolvido temas e tropos icónicos no cinema que, hoje em dia, ainda inspiram não só realizadores, como também múltiplos géneros, como dramas psicológicos, neo-noirs e thrillers criminais.


Traduzido por Beatriz Lourenço


Bibliografia




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